NEWTON NAVARRO, UM ARTISTA MÚLTIPLO

Sombra da Oiticica. Disponível em: https://sombradaoiticica.wordpress.com/2009/12/24/newton-navarro-e-sua-cidade/ Acesso em 6/11/2020

Pesquisar a vida e obra de Newton Navarro não é uma tarefa difícil nem tampouco cansativa. Várias páginas virtuais, de domínio público, trazem dados histórico e biográfico daquele que foi chamado de “um homem de muitas faces”, dada a polivalência artística e intelectual que lhe era peculiar. Navarro se tornou mais conhecido do grande público através de seus desenhos de traços geométricos, povoados por mar, cidade e sertão, mas sua obra vai muito além.
Newton Navarro foi um artista múltiplo que dominou com talento e criatividade várias áreas da intelectualidade. Foi orador de excelência, escritor de contos, crônicas, de textos jornalísticos, textos teatrais, além de reconhecido artística plástico, área que o tornou mais conhecido. Em reportagem publicada no jornal “A República”, de 18/03/1976, Navarro declarou que se sentia mais um desenhista, procurando, num grafismo muitas vezes exagerado, representar todo seu sentimento diante de uma figura ou paisagem.
Ele também se autodeclarou místico, afirmando que nas paisagens, nos cangaceiros, em tudo, sentia a presença admirável de Deus, condição de sua arte (GALVÃO, 1982, p.27-8), daí os temas propriamente religiosos, como Cristo, santos, procissões e Igreja estarem tão presentes em sua obra.
 
Newton Navarro, o escritor
Como escritor Newton Navarro colaborou n’A República, Diário de Natal e Tribuna do Norte e publicou os seguintes livros: Subúrbio do Silêncio (poesias, 1953); O Solitário Vento do Verão (contos, 1961); 30 Crônicas não-selecionadas (crônicas, 1563); Beira-Rio (crônicas, 1970); Os Mortos São Estrangeiros (contos, 1970); De Como se Perdeu o Gajeiro Curió (novela, 1974); Do Outro Lado do Rio, Entre os Morros (sem indicação) e ABC do Cantador Clarimundo (poesias). Produziu, ainda, álbuns de gravuras e peças teatrais. Pertencia à Academia Norte-rio-grandense de Letras. Foi o mentor e primeiro diretor da Escolinha de Artes Cândido Portinari, da Fundação José Augusto, hoje tendo o seu nome. (veja https://www.guiadasartes.com.br/newton-navarro/obras-e-biografia. Acesso em 06/01/2019).
Gustavo Sobral, informa, no posfácio escrito para a terceira edição do livro “O solitário vento do verão”, que se formava nos anos 1950, um renovado cenário das letras potiguares, no qual se inseriu Navarro.
Uma cena movimentada pelos suplementos literários feitos de poemas e artigos, onde os consagrados Américo de Oliveira Costa, Luís da Câmara Cascudo e Edgar Barbosa apadrinhavam os chegados: Zila Mamede, Nei Leandro de Castro e Newton Navarro, entre outros. O clima social e político era favorável à efervescência da cultura potiguar. Antonio Pinto de Medeiros, na sua coluna no Diário de Natal, fazia crítica séria e imperdoável, na qual não cabia elogio desbaratado nem tampouco simpatias e apadrinhamento. A mudança de governo, com a morte do governador Dix-Sept Rosado (1952) e a posse do vice, Sylvio Pedroza, promove um impulso na produção cultural do estado. A coleção Jorge Fernandes publicará os novos poetas que timidamente começavam a produzir, poetas que se tornariam grandes nomes na literatura potiguar. Zila Mamede, em 1953, publica seu primeiro livro: Rosa de Pedra; Celso da Silveira, 26 poemas do menino grande (1952); e Sanderson Negreiros, O ritmo da busca (1956). Navarro, em 1953, se lança na poesia e sai com o seu Subúrbio do silêncio, que depois renegaria, tratando por obra da juventude. (SOBRAL, 2013, p. 95-6)
 
 
Subúrbio do silêncio
Subúrbio do silêncio foi um livro de poesias lançado em 1953. Nessa obra Navarro expõe quatorze poemas curtos, modernistas, falando de temas como tempo que se dissipa, amada, drama do amor, desolação pelas perdas da vida, a fugacidade da morte, o saudosismo. O livro revela um poeta que cria cenas do dia a dia, paisagens, anedotas, como se traduzissem o estado de espírito do poeta no drama de sua poesia.
Dentro do azul vive um anjo, o coração é mistério vermelho, o gesto se desenha, o quintal é cinzento, o sol tem a cor de ouro antigo. Até o silêncio é colorido e as poças de lama têm o som verde. O Navarro poeta do Subúrbio é o poeta que semeia a brevidade da vida, que fala do tempo, que trata dos bichos (Sapo, Aranha, Abelha), que sente e evoca suas impressões e sentimentos perante o mundo. (SOBRAL, 2013, p. 96-7)
 
Em 1955 a Prefeitura de Natal promove um concurso literário. Nesse concurso Navarro apresenta um longo poema narrativo intitulado “O ABC do cantador”, que ganha o primeiro prêmio. O poema, na verdade um texto em literatura de cordel, narra a saga de um cego cantador de viola, que vaga pelo mundo num sofrimento sem fim, típico do sertanejo nordestino. O andarilho cantador é um admirador do cangaceiro Lampião, em sua visão, protetor dos oprimidos e vítima das injustiças sociais, que sofre nas mãos da polícia opressora e violenta, que na verdade deveria protegê-lo.
Segundo Tarcísio Gurgel[1], Na literatura potiguar, não havia, até o início dos anos 1960, nada que se configurasse novidade.
A produção de contos era muito tímida, até Navarro, em 1961, lançar O solitário vento de verão e Nei Leandro de Castro, em 1966, o Contistas norte-rio-grandense, uma antologia. Navarro inaugura, portanto, uma vertente muito ausente na literatura potiguar ao propor um livro de contos inédito. Inédito, porque não é fruto de compilação de contos publicados em jornais ou revistas, mas confeccionados propriamente para o livro. (SOBRAL, 2013, p. 96)
 
 O solitário vento do verão
Lançado em 1961, impresso na Imprensa Oficial de Pernambuco, O solitário vento do verão é uma promoção do Plano Cultural do então governo do Rio Grande do Norte, sob a gerência do governador Aluísio Alves, por meio da Secretaria de Educação e Cultura, na administração do Secretário Grimaldi Ribeiro. Segundo nota publicada no Jornal Tribuna do Norte à época, o livro foi um sucesso. A capa é ilustrada com um desenho do próprio Navarro, mas não há folha de rosto nem referências. São sete contos distribuídos em sessenta e cinco páginas.
Em 1998 o livro é reeditado. Essa segunda edição traz algumas supressões e alterações em relação à primeira edição. Certamente não houve consulta direta ao autor, pois este já havia falecido (em 1992). A possibilidade é que tenha sido feita algum tipo de consulta aos originais da obra.
Em 2013 o livro é republicado pela terceira vez, impresso nas Oficinas Gráficas da EDUFRN, Editora da UFRN, em outubro. Essa edição procurou ser o mais fiel possível ao original, sendo feitas correções exclusivamente de ordem gramatical. O livro traz um posfácio (Pág. 81-109), escrito por Gustavo Sobral, escritor, jornalista e ensaísta natalense, com informações interessantes e explicativas sobre a obra de Navarro.
 
O Solitário vento do verão, edição 2013, é composto por sete contos e um posfácio:
  1. Um fruto verde (pág. 7)
  2. Raízes (pág. 21)
  3. As três serenas manhãs do galo amarelo (pág. 29)
  4. Tarde (pág. 43)
  5. Três frutos podres  (pág. 49 )
  6. Os cavalos  (pág. 61)
  7. O solitário vento do verão (pág. 69)
            Posfácio (pág. 81-109)
Os contos são marcados pela presença constante do vento, em momentos transformadores da vida dos personagens. Talvez seja ele o maior protagonista das histórias contadas, porque governa a mobilidade e o transitório da vida:
 
 “Com a chegada da noite o vento foi reinando...” (“As três manhãs do galo amarelo”); “toda tarde foi de vento forte, raspando o telheiro baixo e sujo...” (“A tarde”); “Depois da chuva ficou o vento frio...” (“Três frutos podres”); a beira do rio onde se banham os meninos, em “Os cavalos”: “onde o vento fresco encrespava pequenas ondas de espuma amarelada”. “Como ventou, àquela tarde em Rosário”, em “O solitário vento de verão”. O vento é aquele tudo conduz, que dita o tempo, revolve o espaço, espalha o drama que se aquieta, segue na contramão, incólume, um vento que solitário, neste conto título do livro, leva a personagem, tomada pelo imobilismo, a perceber que para romper é preciso fazer como o vento, passar, levar, empurrar, espalhar, seguir. (SOBRAL, 2013, p. 105)
 
            Realizei a leitura dos sete contos e do posfácio, e resolvi comentar nesse ensaio o conto “O solitário vento do verão”, que inicia com um vento forte, varrendo a cidade de Rosário, e uma senhora triste, Judith, que amargurada revive sua vida e suas escolhas. Ela se vê trancada em sua casa, com tudo revolto pela ventania louca, que audaciosamente invade não só sua residência, mas também seus pensamentos, desarrumando os móveis, agitando as cortinas e principalmente desfazendo a ordem das coisas arranjadas.
Judith percebe, naquele momento de vento intenso, que sua vida seguia o mesmo curso daquela ventania, seus dias eram tortuosos e vazios, e imaginava o outro lado da aventura humana. Sabia haver esse outro lado misterioso, mas já havia desistido de descobrir. Ainda jovem prometera, no leito de morte de sua mãe, ser guardiã da casa e das memórias dos que se foram, mas isso lhe custou caro, pois terminou sozinha, acompanhada apenas de alguns empregados. Aos poucos foi perdendo o ânimo e a alegria de viver. A ventania intensa daquela tarde mexe definitivamente com a mente da jovem mulher atormentada pela solidão:
Na pequena sala, ainda apagada, Judith deixava o olhar atilado seguir os rodopios do vento, visto através da janela. Qualquer coisa em si mesma partia-se também, fugindo, despregando-se à custa de safanões, como se lhe rasgassem os vestidos colados ao corpo ainda virgem. Por vezes a sala inteira serenava. Uma quietude maior presidia as coisas. A grande cortina de gaze quase não se movia e apenas a respiração mais apressada de Judith se fazia sentir, como única denúncia de vida. (NAVARRO, p.71-2)
As irmãs, todas casadas, viviam distante, preocupadas apenas com suas famílias, e ela, Judith, vivia sozinha e entediada, desprendida totalmente da vida social, vendo o tempo passar. Distraia-se apenas com algumas poucas leituras, que já não lhe prendiam tanto a atenção. Estava envelhecendo, o espelho denunciava a passagem do tempo, mas ela ainda sonhava com um casamento, chegando até, em um momento de desvario, a se vestir de noiva (colocando um velho vestido que pertencera a uma tia que às vésperas do casamento fugira com um empregado da casa).
Judith, totalmente enlouquecida naquela noite de ventania assustadora, vive uma estranha noite de núpcias consigo mesma e sua solidão. A obsessão domina seus sentidos e ela escuta um convite do vento. “A hora é chegada”. Uma forte lufada invade a sala. Seus olhos se acendem, seus lábios tremem, as cortinas e as folhas do livro sobre a mesa se desarrumam. Cuidadosamente ela anda até a porta e se entrega por inteira:
E foi seguindo o vento, e se deixou levar, leve, fantasmal, indecisa, pelo meio do renque de eucaliptos, entre a curiosidade das fachadas austeras que acompanhava a sua aventura através das grandes janelas aclaradas. Com a sua saída o vento ainda mais desadorou-se. Uivava como bicho doente, enquanto na velha casa a porta escancarada batia como coisa de agouro... Judith foi-se entre ondas de poeira vermelha. Seu vulto demorou ainda em se perder, já no fim da rua. O cabelo desfeito espalhava-se no tempo, como terrível medusa desenhada no céu da tarde que escurecia... As mãos esguias sustentavam as ânsias que mal cabiam no peito. E ela corria, deixando-se levar, no ímpeto com que a arrastavam os libertos cães, aos quais, por tantos anos alimentara em solidão, com sonhos e desejos... Por fim a ventania apagou a sua visão empoeirada e a cidade de Rosário acendeu seus bicos de gás para a vigília da noite. (NAVARRO, p.78)
 
            Concluo esse breve ensaio descobrindo uma paixão pelos contos de Newton Navarro, que ao meu ver, demostram uma necessidade de ação e liberdade, mesmo diante das dificuldades presentes no percurso da vida. Até quando não conseguimos enxergar saídas, quando a luta parece perdida, precisamos ir em frente. Gustavo Sobral traduz em seu posfácio uma opinião bastante interessante sobre o autor. Ele diz que:
Navarro está legando aos seus contos um tanto do que foi a sua vida, uma total entrega ao simples ato de viver desmedidamente e de transformar a existência em algo significativo, lutando contra o que aprisiona, fenece, recolhe, estagna. O vento de agosto que sopra em todos os contos parece que conduz as cenas e as intrigas de cada narrativa. Mas o fio da esperança sempre se conserva. O caminho das personagens é sempre de mudança e de transformação. Algo nasce da dor, nem que seja a perplexidade, o espasmo, a continuidade ou a ruptura. A transformação é uma tomada de consciência de si no mundo. Navarro escreve seus contos do jeito como se conta uma história oral, como se desfia um causo. Um efeito que, embora pareça fácil e aparente, como se se falasse como se escreve, revela um autor com profundo domínio da palavra e das técnicas narrativas. Navarro sabe construir uma personagem em sua complexidade. Ele elenca sua natureza psicológica, constrói os cenários com os elementos necessários e ao destacar detalhes constrói imagens visuais com economia de palavras e com a riqueza do poeta que é. Experiências mínimas, como um simples fechar dos olhos, são descritas com a beleza que revela um autor atento ao menor dos detalhes, que nada deixa escapar ao necessário na construção de suas imagens. Econômico, mas preciso. (SOBRAL, 2013, p. 106).
 
 
Referências Bibliográficas:
 
GURGEL, Tarcísio. Informações da literatura potiguar. Natal: Argos, 2001.
 
NAVARRO, Newton. O solitário vento do verão: Contos. 3. ed. Natal, RN: EDUFRN, 2013.
 
GALVÃO, Marlene Almeida.  Newton Navarro: o artista e sua obra. Natal: PRAEU/UFRN, 1982.  (Textos Acadêmicos, Ano 2, Nº 73). 
 
 
Páginas virtuais consultadas:
 
http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/multiplas-faces-de-newton-navarro/268097
https://www.guiadasartes.com.br/newton-navarro/obras-e-biografia
http://ormuzsimonetti.blogspot.com/2010/08/homenagem-newton-navarro.html
https://sombradaoiticica.wordpress.com/2009/12/24/newton-navarro-e-sua-cidade/
 
 
[1] GURGEL, Tarcísio. Informação da Literatura Potiguar. Natal: Argos, 2001

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